quinta-feira, 8 de abril de 2010

Testamento

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
 
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
 
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
 
Criou-me, desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
 
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!
 
29/01/1943
 
Bandeira, Manuel. Antologia Poética. 8 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1976. p. 119
 

A Estrela

Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
 
Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.
 
Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?
 
E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.
 
 
 Bandeira, Manuel. Antologia Poética. 8 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1976. p. 110-111
 
 
 

Momento num café

Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
 
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
 
 Bandeira, Manuel. Antologia Poética. 8 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1976. p. 93

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço do Sr. Diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
 
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
 
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.
 
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do manate exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc.
 
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo do bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
 
 - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
 
 
Bandeira, Manuel. Antologia Poética. 8 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1976. p. 63-64
 

sábado, 3 de abril de 2010

O fim da lavadora de roupas

Máquina de lavar roupas é coisa do passado. Gasta muito tempo, água e energia elétrica. Ou seja, não é nem um pouco "ecofriendly". Veja aqui o método revolucionário que inventei, passo a passo:

1.Pegue um par de meias sujo. É melhor treinar com uma peça de roupa simples. Depois você pode fazer o mesmo com uma jaqueta
2.Jogue um pouco de sabão em pó dentro da privada. É importante e higiênico puxar a descarga antes
3.Coloque a meia dentro da privada. Mexa um pouco para fazer espuma
4.Puxe a descarga duas vezes. Uma para lavar e outra para enxaguar. Importante: segure a meia firmemente para que ela não entre pelo encanamento
5.Prontinho. Em segundos as meias estão limpinhas
6.Agora é só torcer e pendurar para secar.
 
 

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Madrigal Melancólico

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que já nela de fragilidade e de incerteza.
 
O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
 
O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.
 
O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi,
Não é a irmã que já perdi,
E meu pai.
 
O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
 
Manuel Bandeira
11 de julho de 1920
 
Bandeira, Manuel. Antologia Poética. 8 ed. Rio de Janeiro: Livraria José Olímpio, 1976. p. 48-49